Acesso aos documentos produzidos na ditadura*
No dia 5 de outubro comemoramos os 20 anos da Constituição brasileira. A Carta foi um marco que permitiu ações voltadas, de modo amplo, à proteção dos direitos humanos e dos valores democráticos. Como havíamos saído de recente ditadura (1964/85), os valores constitucionais foram essenciais para se avançar no processo da justiça de transição e buscar alcançar a finalidade precípua dessa justiça: a apuração da verdade e a divulgação para a sociedade dos fatos ocorridos durante o período ditatorial. Porém, o direito ao acesso à documentação sobre os presos e desaparecidos políticos ainda não encontrou sua efetividade, apesar do abrigo constitucional.
Podemos fazer várias leituras desse direito na Constituição. Mas partiremos de um ponto: os documentos governamentais produzidos na ditadura são bens culturais que integram o patrimônio brasileiro, pois se ligam à memória, identidade e ação da sociedade. Essa definição é extraída do art. 216 da Constituição (e os documentos se enquadram no inciso IV e § 2° desse dispositivo). A indicação constitucional é de preservação dos documentos, públicos ou privados, quando estes forem portadores de valores de referência cultural relevantes socialmente. No aludido artigo não há pormenores sobre a organização da documentação, já que isso é matéria infraconstitucional.
Assim, a proteção jurídica dos documentos pode se dar de modo individual ou em conjunto. Agrupados (de forma organizada), os documentos compõem o patrimônio documental brasileiro. Além disso, a documentação que integra o patrimônio brasileiro serve de elo de ligação intra e intergeracional, com a função de fornecer elementos para compreensão e interpretação, pelos historiadores e outros experts, dos fatos ocorridos, com objetivo de resguardar a memória do povo brasileiro bem como de compreender os movimentos que afetaram os brasileiros.
No plano infraconstitucional, coube à Lei nº. 8.159/91 abordar os aspectos jurídicos mais relevantes para a gestão documental no Brasil, ao instituir a política nacional de arquivos públicos e privados. Esta lei estabelece, dentre outros conceitos e diretrizes, o princípio do acesso pleno aos documentos (art. 22). Assim, os arquivos, públicos ou privados, são tratados pela Lei nº. 8.159/91 como instrumentos de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico ou ainda como elementos de prova e informação (para a sociedade ou para o próprio Poder Público).
Por isso, pode-se afirmar que no ordenamento brasileiro há um lastro que permite o exercício do direito ao acesso à informação de dimensão pública. E mais: que tal direito se concretiza pelo franqueamento da consulta, a todos os interessados, aos arquivos públicos ou privados. Dessa forma, o conhecimento dos documentos governamentais sobre as prisões e investigações de pessoas na fase ditatorial brasileira é forma de exercitar o direito ao acesso à informação de dimensão pública. Esse exercício (do direito) deveria se dar tranquilamente no Estado democrático brasileiro, com base na Constituição aniversariante.
Mas não é assim. As práticas do Executivo (inclusive as regulamentares das leis) não guardam consonância com o aparato jurídico que garante o direito ao acesso e à consulta aos documentos governamentais. A fragilidade desse direito fica evidente com a manutenção do Decreto n° 4.553/2002 (mesmo com alterações de 2004) que classifica documentos como ultra-secretos, secretos, confidenciais e reservados e estabelece prazos extremamente longos para seu acesso, além de permitir a renovação, por igual período, da restrição aos documentos. Na prática, o decreto inviabiliza vários direitos fundamentais, já que priva a sociedade de informações preciosas sobre seu passado recente e prejudica a transparência do poder.
Esperar 60 anos para se ter acesso às informações sobre o que ocorreu nos porões ou acerca da localização dos restos mortais dos desaparecidos é um lapso temporal demasiadamente longo. A aposta dos que assim regulamentam a Lei nº. 8.159/91 (que fala em amplo acesso!) é no esquecimento, na perda de memória. O percurso da busca da verdade está prejudicado no Brasil, apesar de uma Constituição com valores e instrumentos democráticos aptos a serem utilizados.
Inês Virgínia Prado Soares*
É Procuradora da República em São Paulo, mestre e doutora em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito Sanitário pela UNB e presidente do Instituto de Estudos Direito e Cidadania – IEDC.
Podemos fazer várias leituras desse direito na Constituição. Mas partiremos de um ponto: os documentos governamentais produzidos na ditadura são bens culturais que integram o patrimônio brasileiro, pois se ligam à memória, identidade e ação da sociedade. Essa definição é extraída do art. 216 da Constituição (e os documentos se enquadram no inciso IV e § 2° desse dispositivo). A indicação constitucional é de preservação dos documentos, públicos ou privados, quando estes forem portadores de valores de referência cultural relevantes socialmente. No aludido artigo não há pormenores sobre a organização da documentação, já que isso é matéria infraconstitucional.
Assim, a proteção jurídica dos documentos pode se dar de modo individual ou em conjunto. Agrupados (de forma organizada), os documentos compõem o patrimônio documental brasileiro. Além disso, a documentação que integra o patrimônio brasileiro serve de elo de ligação intra e intergeracional, com a função de fornecer elementos para compreensão e interpretação, pelos historiadores e outros experts, dos fatos ocorridos, com objetivo de resguardar a memória do povo brasileiro bem como de compreender os movimentos que afetaram os brasileiros.
No plano infraconstitucional, coube à Lei nº. 8.159/91 abordar os aspectos jurídicos mais relevantes para a gestão documental no Brasil, ao instituir a política nacional de arquivos públicos e privados. Esta lei estabelece, dentre outros conceitos e diretrizes, o princípio do acesso pleno aos documentos (art. 22). Assim, os arquivos, públicos ou privados, são tratados pela Lei nº. 8.159/91 como instrumentos de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico ou ainda como elementos de prova e informação (para a sociedade ou para o próprio Poder Público).
Por isso, pode-se afirmar que no ordenamento brasileiro há um lastro que permite o exercício do direito ao acesso à informação de dimensão pública. E mais: que tal direito se concretiza pelo franqueamento da consulta, a todos os interessados, aos arquivos públicos ou privados. Dessa forma, o conhecimento dos documentos governamentais sobre as prisões e investigações de pessoas na fase ditatorial brasileira é forma de exercitar o direito ao acesso à informação de dimensão pública. Esse exercício (do direito) deveria se dar tranquilamente no Estado democrático brasileiro, com base na Constituição aniversariante.
Mas não é assim. As práticas do Executivo (inclusive as regulamentares das leis) não guardam consonância com o aparato jurídico que garante o direito ao acesso e à consulta aos documentos governamentais. A fragilidade desse direito fica evidente com a manutenção do Decreto n° 4.553/2002 (mesmo com alterações de 2004) que classifica documentos como ultra-secretos, secretos, confidenciais e reservados e estabelece prazos extremamente longos para seu acesso, além de permitir a renovação, por igual período, da restrição aos documentos. Na prática, o decreto inviabiliza vários direitos fundamentais, já que priva a sociedade de informações preciosas sobre seu passado recente e prejudica a transparência do poder.
Esperar 60 anos para se ter acesso às informações sobre o que ocorreu nos porões ou acerca da localização dos restos mortais dos desaparecidos é um lapso temporal demasiadamente longo. A aposta dos que assim regulamentam a Lei nº. 8.159/91 (que fala em amplo acesso!) é no esquecimento, na perda de memória. O percurso da busca da verdade está prejudicado no Brasil, apesar de uma Constituição com valores e instrumentos democráticos aptos a serem utilizados.
Inês Virgínia Prado Soares*
É Procuradora da República em São Paulo, mestre e doutora em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito Sanitário pela UNB e presidente do Instituto de Estudos Direito e Cidadania – IEDC.
Foto: http://200.252.29.138/aleac/tche/wp-content/uploads/2008/03/8-731091.jpg
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